sexta-feira, 23 de julho de 2021

Carta aberta à ela

 Nos encontramos todo ano, nessa época do ano. Faltando poucos dias pro aniversário dela. Ela sempre senta, chora, grita e escreve. Costuma fazer planos também e desce alguns degraus para encontrar a loucura, quase sempre assisto tudo calada, mas dessa vez decidi escrever uma carta à ela. 

   É um ciclo não? Viciante. Impotente você revisita momentos de alegria através de fotos, se lê para se entender um pouco mais e observa o que mudou no rosto, se envelheceu. Dessa vez notou que sim, envelheceu. Parece inevitável que isso iria acontecer cedo ou tarde, observou que o olhar se tornou mais cansado, mais desanimado, vai fazer o que? Vai aceitar. Só resta isso. Morreu a menina faz tanto tempo, restou a mulher. Ela é estranha sabe? Mas é melhor que a menina, muito melhor que a adolescente e a criança. Elas se foram. 

   Restou a mulher. Corajosa, mas ainda fraca. Ela tenta se recordar se está aproveitando o tempo do jeito certo. Ela sabe que não. Ela nunca esteve. Nunca soube aproveitar nada direito. Poucas foram as vezes que realmente relaxou, aproveitou. A agitação veloz e esmagadora é culpa do relógio ela diz. Não é não. É culpa dela. 

   Vai chegar os 28 dela. Que coisa. 

domingo, 4 de julho de 2021

Plano sequência

     Desceu o morro numa corrida só, parou no bar do Seu Tonho, pediu torresmo e a cerveja de sempre. Sentou. Esperou. Ela ia passar por ali naquela hora do dia, ele bem sabia.  

     Pagou o motorista, entrou no ônibus lotado, se segurou numa mão só e rezou para que alguém descesse no terminal próximo, só pra conseguir segurar a bolsa direito e não ter perigo de roubo dessa vez. Ninguém desceu. Ajeitou como pôde e respirou fundo. Vai chegar logo. 

      Ele perguntou a hora pro seu Geraldo que tava entornando mais um gole ao seu lado. Bêbado demais pra ver a hora, ele só emitiu um grasnado e balançou a cabeça. Ela desceu no ponto do ônibus. Ele correu do bar pra direção dela do outro lado da rua e começou a série de xingamentos. 

     Ela teve o cabelo puxado em direção ao asfalto. Todo mundo olhou na rua e virou o rosto. É “briga de marido e mulher, não se mete a colher, a senhora conhece o ditado não é mesmo Dona Gilda”. Os cachorros começaram a descer e latir no morro, as motos passavam correndo. Era tiro. Corre Pedrinho. É tiro! Os homi. Corre!

    Um cachorro agarrou na canela dele. Ela aproveitou para se reerguer. Olhou a rua, viu uma moto com dois meninos sem capacete e descalços derrapando no chão metade terra, metade asfalto.

    Aproveitou e empurrou ele na direção. A moto pegou com tudo e atirou o ex-marido longe. 

   Ela respirou aliviada até ouvir um tiro.